A pergunta fundamental
Entre tantas enrascadas que enfrentamos na @insparklab tentando praticar Permacultura Social no leste da África, uma delas vai ficar pra sempre na minha memória como um episódio nas entrelinhas entre o trágico e o didático:
Em uma das reuniões mais importantes que facilitávamos com os moradores de Muchatha — uma comunidade na periferia de Nairobi, no Quênia- um dos líderes do governo local enviou uma viatura com um oficial que, através da ameaça de prisão, nos conduziu até a sala do Comissário Geral do Condado para discutir o que estávamos fazendo no projeto. Para eles era muito estranho que um grupo de Muzungus (termo usado para se referir a gente branca na África) chegasse em uma das suas comunidades e começasse a articular encontros e discussões entre moradores, e eles naturalmente se sentiram ameaçados com o movimento que surgia de dentro da sua jurisdição.
Depois uma longa e dramática conversa e principalmente depois de ser apresentado ao plano base da iniciativa o Comissário se convenceu de que o projeto tinha boas intenções e objetivos nobres. Chegamos a um acordo razoável e fomos liberados, agora muito mais conscientes dos cuidados que deveríamos tomar conduzindo projetos extra oficiais no exterior. Deixando os detalhes da história um pouco de lado, para cumprir com os objetivos da mensagem desse texto em particular, eu gostaria de falar um pouco mais sobre as impressões que tive em relação ao senhor Comissário na ocasião:
Um sujeito com um grande título. Inteiramente convencido de que era o Comissário Geral do Condado. Dava pra ver nas expressões do seu rosto. Dava pra ver no jeito que ele andava. Dava pra sentir nas coisas que ele dizia. Tenho certeza que você também conhece pessoas assim. Gente que se define pelos cargos que exercem e pelas cadeiras que ocupam. Para essas pessoas tudo é muito sério, tudo é estritamente oficial. Você precisa seguir os protocolos, jogar segundo as regras do jogo e não esquecer de preencher os formulários. Os nossos problemas teriam sido facilmente evitados se encarados como um dilema humano, entre indivíduos que usam a empatia como caminho para o entendimento. No final das contas, todos nós queríamos uma mesma coisa: Promover o bem estar dos moradores de Muchatha. Mas a necessidade de controle de uma estrutura social pouco empática causou uma grande confusão que nos custou a confiança de alguns dos maiores parceiros do projeto.
A vasta maioria dos problemas que enfrentamos no mundo hoje-intolerância, ameaças constantes de novas guerras e conflitos, crises econômicas, desigualdade estrutural e tantos outros — na minha opinião possuem uma origem comum, que o senhor Comissário me ajudou a descobrir:
A identificação do ser humano com coisas que ele não é.
Cargos, posições sociais, bens materiais, características físicas e tantas outras identificações pressupõem uma noção de individualidade que é, tanto do ponto de vista filosófico quanto espiritual, uma grande ilusão. Uma ilusão que nos faz querer tirar o melhor para nós mesmos. Uma ilusão que nos faz buscar o prazer próprio, a boa reputação e os elogios enquanto fugimos da dor, da vergonha e das críticas. Uma ilusão que promete grandes sensações, mas no final do túnel guarda êxtases artificiais que com o passar do tempo se transformam em grande amargura. A filosofia Ubuntu, vastamente disseminada por Nelson Mandela na luta contra o Apartheid, traz uma concepção que vai na contra-mão de tudo aquilo ao que nos condicionamos enquanto pessoas separadas umas das outras: Eu sou porque nós somos. Em outras palavras, a minha existência pressupõe a existência daqueles que estão à minha volta. Essa é a mensagem fundamental defendida pela maior parte das religiões! Sendo curto e grosso, seja legal com os outros! Se você se identifica com a totalidade — em outras palavras, se você vê a si mesmo no outro — ninguém precisa te ensinar a ser gentil e fazer o bem. Ninguém precisa te ensinar a amar o próximo, e a não fazer aos outros o que não quer que aconteça consigo. E a partir daí você poderia concluir o seguinte:
Se eu sou porque você é e você é porque eu sou, então eu não sou “eu” e você não é “você”. Sentiu o nó mental? Deixa eu tentar explicar:
Vamos supor que em uma entrevista de emprego pouco convencional o entrevistador te largue, como pergunta fundamental:
“Quem é você?”
Bem, você poderia dizer o seu nome, mas isso ele já sabe. De onde veio, onde mora, quantas línguas fala, que escolas frequentou, que outras experiências profissionais teve, tudo isso ele já leu no seu currículo. Você poderia começar a descrever os seus hábitos, conquistas e aventuras, mas isso seria como tentar definir a natureza de uma cobra através dos seus movimentos do seu rastejar. O seu comportamento é a manifestação daquilo que você é, mas ele não define a sua identidade. Alternativamente, você poderia falar sobre as suas características físicas e psicológicas, mas assim como o seu comportamento as suas atribuições são simples manifestações daquilo que você é de verdade, além de estarem em constante mudança, se transformando a cada nova experiência vivida. Você poderia, cansado da masturbação filosófica, chegar a dizer que é um processo incessante de mitoses e meioses, de transformações celulares que constituem o seu corpo físico. Porém, o fato é que o seu corpo é produto da acumulação daquilo que você come, ele é algo que você possui. Você claramente não é aquilo que você possui, da mesma maneira que você não é o seu carro, a sua casa ou nenhum dos seus bens materiais.
Um dos primeiros passos para a caminhada de estudo guiada por mestres Zen costuma ter uma abordagem de indagação semelhante. A pergunta fundamental (Quem é você?) é feita e a instrução é simples: Vá embora e só volte quando tiver uma resposta definitiva. O Discípulo então medita sobre a questão e tenta de todas as maneiras definir o que é essa noção de “eu” separada do todo. Vale lembrar que a vida prática constrói em nós a noção de que somos uma entidade separada no meio no qual vivemos. Note, no entanto que crianças não nascem com esse senso de identidade. Nos primeiros anos elas referenciam a si mesmas na terceira pessoa, dizendo coisas como “O João está com fome” ou “O Pedro quer isso ou aquilo”. Com o passar do tempo lhes ensinamos que devem dizer “Eu estou com fome”, ou “Eu quero isso ou aquilo”, e a partir daí e criado um conceito de identidade que é muito útil porém irreal, e o não entendimento disso cria uma série de problemáticas no desenvolver da nossa consciência.
A Terra cria pessoas assim como uma árvore dá frutos, ou como o mar gera ondas na praia. É fácil, principalmente na cultura oriental, entender as coisas e os fenômenos da existência como entidades separadas, como peças de uma máquina. A noção mecanicista ou Newtoniana do mundo é basicamente isso, quebrando todas as coisas até o nível de partículas que podem ser mensuradas e analisadas individualmente. Porém estudos de física quântica já provaram a tempos que as partículas fundamentais de toda a matéria que nos cerca na verdade são constituídas por filamentos energéticos dançantes, que vibram em diferentes frequências dando origem às diferentes partículas.
A rigor, nada pode ser encarado como um objeto ou fenômeno separado porque tudo é uma mesma energia dançando em diferentes ritmos. O planeta, ou inclusive o universo é literalmente uma teia infinita de interações entre fenômenos simultaneamente interligados. As partes desse sistema vêm de dentro do próprio sistema, diferentemente de uma máquina. Quando você tem um problema no seu carro, por exemplo, você vai até o mecânico, ele remove a peça com problema e a substitui por outra da prateleira. Note que isso não acontece no sistema da existência. Tudo aquilo que é criado vêm de dentro do próprio sistema, o que pressupõe um processo de abrir mão de coisas que são para novas possam surgir. Nada vem de fora do sistema, o que o faz do planeta — ou mesmo do universo inteiro- um único grande e eterno organismo. Um organismo crescente, alimentando-se de tudo aquilo que ainda não é — note que para que algo possa existir, algo deve “não existir”, e daí poderíamos entrar nas dinâmicas especulativas que conectam o conceito de anti-matéria com o conceito do vazio de todas as coisas proposto por religiões do Oriente, mas isso é um tópico para ser abordado em um outro texto.
O fato é que aquilo que você chama de realidade é uma coisa integralmente relativa. Não só pela natureza energética da matéria, mas pela singularidade da sua perspectiva e pela limitação dos seus sentidos. Considere a seguinte pergunta:
Se uma árvore cai em uma floresta onde não há ninguém, haverá barulho?
Haverá vibração, com certeza. Mas note que o barulho pressupõe um mecanismo de sentidos que reconhecem e interpretam essa vibração. Em outras palavras, a existência pressupõe um observador. Ser é ser percebido. Se não existe nenhum traço de consciência ou sentidos para perceber um determinado fenômeno, é como se ele nunca tivesse existido. A partir daí, podemos quebrar a natureza da existência em duas: Consciência e Energia, ou observador e objeto observado. Note também que essas são duas faces de um mesmo acontecer, não são entidades separadas. Ambas são necessárias para reproduzir o que experenciamos como “Existir”. Você não é uma e nem a outra, mas a interação constante entre as duas em uma dança eterna e, ao que tudo indica, imortal.
Você poderia também, como última alternativa de definição da sua real identidade, tratar a sua jornada, as experiências que viveu, os princípios que adotou e as decisões que tomou como sendo “você”. Mas isso seria como tentar definir a natureza de um navio pelo traço de ondulações e espuma que ele deixa no oceano! Além disso, note que sempre que se descreve uma história ou experiência é impossível isolar o elemento da paisagem, ou em outras palavras o ser do ambiente e das situações que o contêm. Você não pode descrever alguém caminhando sem começar a descrever o chão, assim como não pode descrever alguém falando sem começar a descrever aquele que escuta! Em outras palavras, você e a paisagem que te cerca com todos os seus elementos são por definição um único acontecer.
É só depois de passar por todas essas considerações que tanto o sujeito da entrevista de emprego quanto o discípulo Zen chegam a uma mesma conclusão: Se não há como dividir a minha existência daquilo que acontece a minha volta, a noção de “Eu” só pode ser uma ilusão.
As correntes espirituais mais hypadas do Oriente — Daoismo, Hinduismo e Budismo — não propõem nenhuma noção de doutrina, ou de mandamentos, regras e instruções vindas de uma autoridade divina. Elas até possuem rituais, mas eles mudam de tempos em tempos e variam de acordo com aquele que os pratica. O que essas religiões propõem é um método para a transformação da consciência humana. Essa transformação, por sua vez, é baseada em um conceito fundamental da própria existência: A ideia de que a pessoa individualizada, delimitada pela superfície da sua pele, não passa de uma alucinação, fruto de uma mente sistemática e calculista com uma necessidade compulsiva de definir limites e colocar nomes em coisas que simplesmente são.
A meditação que surge das práticas propostas por esse método espiritual procura direcionar a atenção humana com uma natureza puramente observadora. Muita gente, quando tenta meditar se queixa de não conseguir silenciar a mente. Bem, você conseguirá silenciar a mente no mesmo momento em que conseguir silenciar o seu coração, os seus rins e outros órgãos. Muita gente tem falado sobre a mente como sendo um grande inimigo no caminho de evolução espiritual. A mente não é um inimigo, a mente é um grande milagre! O segredo está em conseguir criar uma distância entre você e a mente, entender que você não é aquilo que você pensa. Se você cria essa distância, como alguém que observa a confusão to trânsito em uma avenida do alto de uma montanha, o que a mente está fazendo ou deixando de fazer importa menos. Você simplesmente a observa, deixando-a fazer o que quiser fazer, como pássaros ciscando o vidro de uma janela, ou como se estivesse assistindo a um filme.
Essa distância cria um espaço no qual o observador se manifesta. Estar consciente dos próprios pensamentos é como observar o observador. Quem é esse que consegue observar a sua própria consciência? Você consegue observar a esse também?
A filosofia Hinduista, da qual o Budismo se originou, propõe uma interpretação existencial que só pode ser entendida depois da criação dessa distância observadora. Ao invés de encarar a terra como uma pedra gigante onde seres vivos se desenvolveram, os ensinamentos dos chamados Vedas encaram a nossa existência como uma espécie de peça teatral, ou jogo. Um ciclo perpétuo de nascimento, morte e renascimento chamado Samsara onde uma mesma consciência suprema cria constantemente uma aventura existencial incorporando diferentes papéis, manifestados através de consciências individuais que exploram a realidade fundamental através de diferentes corpos, ou veículos. Essa energia suprema é chamada Brahman segundo essa tradição, mas que pode ser encarada como Deus para os cristãos, ou Tao para Taoístas ou, a minha preferida, Eywa — Nome dado à força divina de Pandora no filme “Avatar”. Como você decide chamar isso realmente não importa, o que importa é o reconhecimento daquilo que incorpora tudo o que existe e também tudo aquilo ainda não existe.
O relato de uma pessoa em particular que teve uma experiência de estado místico ou alterado de consciência me chamou muito a atenção. Durante a sessão meditativa ele decidiu ficar com lápis e papel na mão, para escrever a revelação divina durante a experiência. Uma única frase se encontrava, com letras quase ilegíveis pelo tremor das mãos patrocinado pelo êxtase da experiência:
“O insight fundamental da existência de todas as coisas é a de que o universo é feito de… Suco de laranja.”
Há algo sobre a banalidade aparente dessa frase que me parece de uma beleza sublime e singular. É claro que ele não se refere literalmente a suco de laranja, mas a ideia de que o universo inteiro é feito de (…). Algo, alguma coisa à qual não existe explicação. Aquilo que abarca todo o resto. Aquilo onde tudo acontece. Aquilo que é indescritível e impossível de compreender inteiramente, e você pode dar o nome que quiser porque a sua experiência com (…) é única e não pode ser descrita, apenas vivida. É o que os chineses chamam de Dao, ou o que os Hindus e Budistas chamam de Brahman.
Mas, depois de tudo isso você poderia me perguntar coberto de razão:
Ok, massa. Eu não sou eu, sou o universo inteiro, tá tudo interligado e ninguém sabe o que tá acontecendo. Mas e daí?
E daí depende do quão curioso você é. O meu objetivo com esse BLOG é estimular a curiosidade das mentes que acompanham a Afrikkana como um coelho que pula pra dentro da cartola e some. Tentare sempre linkar experiências da viagem com mensagens pertinentes à nossa causa.