A economia dos presentes
Em um Brasil (e mundo) tão dividido, talvez dar mais presentes seja exatamente aquilo que precisamos. Não presentes falsos, com segundas intenções e interesses envolvidos. Me refiro aos presentes puros, quando genuinamente dedicamos o nosso tempo e energia para pensar: O que essa pessoa mais gostaria de ganhar agora? – sem esperar nada em troca e, principalmente, aproveitando a experiência de dar sabendo que estamos também recebendo uma energia de cura.
Dizem que essa energia será maior na medida que o presente seja mais difícil de dar. Talvez o presente com as melhores implicações positivas seja para aquela pessoa com quem temos o maior conflito. Provavelmente a última pessoa para quem gostaríamos de dar alguma coisa, alguém que discorde do nosso ponto de vista, que tenha nos tenha feito alguma forma de violência ou que tenha sido – segundo a nossa interpretação – uma “má” pessoa.
Segundo a tradição Acholi, a paz é mais importante do que a justiça. Mais vale estarmos bem em comunidade, preservando as nossas relações e resolvendo juntos os danos causados por um determinado problema do que procurando responsabilizar ou punir o culpado. Seguindo esse ponto de vista, são comuns ritos sociais centrados em presentear aqueles que tenham cometido algum mal ao grupo ou a algum de seus membros, como forma de desarmar a espiral do ódio através da compaixão e do perdão.
Além de reintegrar socialmente indivíduos excluídos e regenerar os laços entre eles, a prática de presentear outros membros da comunidade acaba gerando uma forma de economia que nunca foi planejada, mas que acontece com harmonia em diversas comunidades tribais ao redor do mundo. Quando eu estava vivendo na tribo de Nja-Nja, no norte de Uganda, os anciões do grupo me contavam que antigamente, na sua tradição, não existia a noção de posse dentro da sua cultura. Quando uma pessoa nascia, ela era considerada literalmente filha da tribo, não atribuindo aos seus pais – que poderiam até assumir o papel de mentores para fins de educação – essa ideia de responsabilização por outro ser, que acaba também sendo uma forma de posse.
Dentro desse contexto, era papel dos anciãos supervisionar o desenvolvimento e auxiliar com a resolução de assuntos interpessoais de cada membro da tribo, sempre prezando pelo bem estar do coletivo. As pessoas plantavam juntas, colhiam juntas e compartilhavam o alimento. Ao invés de um agricultor levar semanas para preparar sua terra para obter sua comida, os membros da comunidade se juntavam e em um dia de força coletiva conseguiam criar uma abundância que mais tarde reverberar para todos. Construíam juntos, viviam juntos e compartilhavam suas moradias e estruturas diversas. Cada ação dessa era um presente, que não era contabilizado pelo grupo, não se esperava nada em troca e ainda assim não faltava nada pra ninguém.
Isso é o que antropólogos chamam de economia dos presentes. O termo Economia vem do grego Oikos, que significa Casa e Nomos, que significa Lei/ Ordem. O sistema de ordem que define a tradição dos Acholi não deixa nada parado na mão de ninguém – os ativos estão sempre circulando, guiados não pela lógica da escassez e do acúmulo (economia moderna), mas pela lógica da abundância e da solidariedade (cultura ancestral). Hoje eu te dou uma pintura para decorar a sua casa, amanhã você me chama para almoçar com o que você colheu e no outro dia somos ambos surpreendidos com uma festa oferecida pelo vizinho. As pessoas estão sempre dando – o que significa dizer que há também sempre alguém recebendo.
Eu acredito que o nosso problema crônico de desunião enquanto nação não seja abastecido necessariamente pelas nossas diferenças, mas pelas nossas atitudes perante as nossas diferenças. Agir a partir da energia de julgamento, reprovação e separação cria resistência a mudança. Talvez essa desunião só possa ser transmutada a partir de uma atitude contrária, quase contraintuitiva: de reverência para com a outra parte, por mais avessa que ela possa parecer. Entender que, ainda que existam dois lados, existe apenas uma moeda – e nós somos essa moeda! Presentear com sinceridade é deixar o que nos divide de lado e mergulhar no universo onde somos todos um e onde a paz é, de fato, mais importante do que a justiça.
Vibramos por três coisas no final desse texto:
Que os produtos da Afrikkana possam simbolizar a semente que gostaríamos de propagar no coração das pessoas: Um ato de carinho baseado nos princípios do cuidado, da sustentabilidade e do coletivismo.
Que ele possa fortalecer muitas pontes e reparar tantas outras!
Que a força do amor dos nossos ancestrais siga nos acompanhando…